terça-feira, 24 de junho de 2008

A Reinvenção da Mídia

Debate – Prosa e Poesia – Jornal O Globo –21/06/2008

Houve um tempo em que a difusão de textos, sons, imagens era atividade exclusiva de grandes empresas capazes de arcar com custos altíssimos de impressão, filmagem, gravação, transporte. Essa época ficou para trás. Nos últimos anos, enquanto os computadores barateavam os processos de produção e edição, os blogs, páginas pessoais e ferramentas de compartilhamento de dados fizeram de qualquer usuário da internet um produtor de conteúdo em potencial. Uma verdadeira quebra de monopólio, que forçou as empresas de mídia a repensarem o relacionamento com seus leitores, espectadores, ouvintes, hoje marcado por uma aproximação crescente. Com os papéis de emissor e receptor mais embolados do que nunca, a imprensa deixou de ser fonte única de notícias e análises sobre os fatos, e viu parte de seus anunciantes migrarem para outros setores. Essas mudanças, que vêm sendo observadas em diversos cantos do mundo, inclusive no Brasil — que comemora este mês os 200 anos de criação da imprensa —, são o assunto de vários livros recentes abordados em entrevistas aqui.


‘Cada vez mais um serviço’. Pesquisador inglês afirma ser esse o caminho de sobrevivência do jornalismo nos tempos da internet

O jornalista inglês Charlie Beckett acha que para adaptar-se às mudanças trazidas pela internet a mídia terá que se aproximar dos leitores e pensar a si mesma cada vez mais como um serviço. Diretor do Polis, o think tank de mídia da London School of Economics, ele acaba de lançar na Inglaterra (Wiley-Blackwell, 216 páginas) um livro sobre o assunto: “SuperMedia: saving journalism so it can save the world”. Em entrevista ao GLOBO, em Londres, ele discute as principais idéias da sua obra.

Fernando Duarte: Qual é a sua análise da crise do jornalismo?
CHARLIE BECKETT: Não é somente uma questão de crise, mas de oportunidade. Com base em 20 anos de experiência profissional e no trabalho acadêmico no Polis, vejo que o jornalismo passou nos últimos anos e passará pelos próximos por mudanças nunca vistas antes. Chegamos a um ponto em que teremos de decidir que tipo de mídia queremos. Vivemos numa época em que a mídia digital chegou para ficar e em que as pessoas estão cada vez mais antenadas em relação aos acontecimentos. Aliada ao desenvolvimento tecnológico, a mídia hoje pode fazer por nós coisas que eram fisicamente impossíveis.

No entanto, diversos veículos de mídia europeus têm realizado estudos falando num futuro pessimista...
BECKETT: Sim, o modelo econômico tradicional está em crise, especialmente nos mercados mais tradicionais. No caso de anunciantes, por exemplo, eles estão deixando veículos tradicionais e não necessariamente surgindo nas versões on-line. Antes, bastava aparecer perto de notícias e torcer para seu produto ser comprado, mas anunciantes agora percebem que podem se conectar mais diretamente com o público, anunciando em ferramentas de busca, por exemplo. Sei que a mídia em lugares como Índia e Brasil ainda segue um modelo mais tradicional, mas na Europa o bolo de receitas publicitárias da mídia tradicional está encolhendo. É uma ameaça ao jornalismo de qualidade.

Em “SuperMedia” você também fala numa certa admissão de derrota por parte da mídia tradicional. Por quê?
BECKETT: Porque a tal guerra entre velha e nova mídia acabou e todo mundo hoje em dia é digital de uma certa maneira. Mesmo que você esteja escrevendo algo tão “antiquado” quanto um livro, você pesquisa on-line e conversa com as pessoas via e-mail. Não é mais uma questão de escolha também em relação ao tal jornalismo do cidadão, embora o conceito para mim seja muito mais amplo do que gente escrevendo blogs ou enviando fotos para websites. Trata-se do cidadão buscando informação com mais autonomia. Antes havia o monopólio da notícia, e os jornalistas eram praticamente as únicas pessoas que podiam produzir e distribuir notícias. Agora o processo é muito menos intermediado e isso significa que a imprensa vai ter que mudar sua forma de agir.

O cenário é tão apocalíptico assim?
BECKETT: Nem tanto. Embora as margens de lucro estejam caindo, veículos de mídia ainda movimentam um bom dinheiro, sem falar que o público quer mais informação, mais debate para ajudá-lo a tomar decisões, de fatores corriqueiros como seleção de escolas à escolha dos políticos em que deve votar. O jornalismo precisa voltar às raízes de prestação de serviços, pois em meio ao cenário que se vê na mídia digital veículos estabelecidos ainda contam com a força de sua marca. Isso, por exemplo, explica um pouco o sucesso da BBC on-line. As pessoas ainda confiam em marcas associadas ao jornalismo de qualidade.

Pode-se falar também numa mudança de dinâmica, não?
BECKETT: O jornalismo vai ter que mudar um pouco a visão de produto que dominou o setor nas últimas décadas. Terá que ser cada vez mais um serviço e os profissionais de imprensa precisarão estar mais sintonizados com o que leitores, ouvintes ou telespectadores consideram útil, mas também há demanda por aspectos em que as pessoas ainda não pensaram. Num plano geral, o jornalismo terá que se encaixar na vida das pessoas, não o contrário. Não é mais aquela coisa de o telejornal começar às nove da noite e as pessoas terem que esperar, pois agora há oferta de notícias 24 horas por dia. Nesse sentido, cativar a atenção do público será quase tão importante quanto conquistar sua confiança...

Fala-se muito no investimento em mais notícias de caráter local para conquistar audiência. Você concorda?
BECKETT: As novas tecnologias simplificaram a interação com a audiência e isso deveria ser aproveitado. Não é uma questão de parar de falar sobre incidentes, mas quem sabe contextualizá-los mais de acordo com os interesses da comunidade afetada, pois essa é a maneira de mostrar a ela que o jornalismo faz parte de suas vidas.

O que você acha de iniciativas como comentários em artigos eletrônicos e as possibilidades de envio de conteúdo por parte de amadores para veículos profissionais?
BECKETT: Fala-se muito em mídia sobre a regra do “um por cento”, isto é, de que apenas um por cento de sua audiência vai se dar ao trabalho de contribuir e participar. Mas um por cento de um milhão de leitores, por exemplo, é um bando de gente oferecendo ajuda e contribuindo, muitas vezes de graça. Mesmo fatos simples como o leitor que fotografa um buraco na rua são um bom exemplo de serviço genuíno. Não adianta pensar apenas em derrubar governos — o público gosta de saber também se a escola do bairro está aberta. Há exemplos de colaborações deste tipo, como no caso de jornais do sul dos EUA que obtiveram informações de leitores sobre o furacão Katrina. Elas ajudaram na construção de grandes histórias sobre o atraso no repasse das verbas do governo americano, por exemplo.

Em “SuperMedia” você fala muito na mudança do perfil do profissional da área. O quão radicalmente ele precisa mudar?
BECKETT: É impossível prever de que tipo de profissionais vamos precisar, mas é claro que gente com boa habilidade para processar informações e se expressar sempre terá espaço. Jornalistas, porém, terão de ser mais flexíveis, visualizando além do trabalho cotidiano. Refletir se estão apenas fazendo o que o editor mandou ou se pensam que alguém lá fora está realmente precisando do tipo de informação que produzem. O novo jornalista terá que saber mais sobre seu público.

Não soa como uma mudança fácil para profissionais mais veteranos.
BECKETT: Creio que muitas vagas serão extintas nos próximos anos. Mas traço um paralelo com a indústria automobilística: a automação tirou o emprego de muita gente, mas carros continuam sendo fabricados com envolvimento humano, só que essas pessoas estão mais envolvidas com o resto da produção do que somente martelando pedaços de metal.

O que dizer das teorias de diversificação do jornal como plataforma de serviço?
BECKETT: É uma forma viável, pois não aposta somente numa faceta do que uma marca confiável pode oferecer. O “Guardian” (jornal diário britânico), por exemplo, hoje age como intermediário até em serviços de aluguel de DVDs. Organizações terão que criar redes de serviços para manter interesse da audiência. Algo além do comercial, diga-se de passagem: a BBC, por exemplo, está estudando envolver-se mais diretamente na organização de campanhas educativas pelo Reino Unido num plano mais local do que meramente institucional.



Em livro, repórter identifica tendências e dilemas do meio, que para ele deve se renovar: ‘Jornal é para quem quer ler’

As especulações sobre uma possível extinção dos jornais impressos têm sido alimentadas nos últimos anos por sucessivas quedas na circulação, concorrência crescente de blogs e sites com informação em tempo real, e por mudanças na relação entre produtor e consumidor de conteúdo causadas pela internet. Em “O destino do jornal” (Record), Lourival Sant’Anna recorre a livros, pesquisas e a entrevistas com diretores de redação dos três maiores jornais brasileiros (O GLOBO, “Folha de S. Paulo” e “Estado de S. Paulo”) para dar ao leitor um panorama geral da questão. Sant’Anna, jornalista do “Estado de S. Paulo”, expõe dilemas e tendências do mercado, mas é prudente na hora de fazer previsões. Em entrevista ao GLOBO, ele diz acreditar que haverá espaço para os jornais no futuro, desde que eles consigam se reformular.

Miguel Conde: Nos últimos anos, a circulação dos jornais brasileiros cresceu, na contramão do que acontece em vários países. Como você explicaria o fenômeno?
LOURIVAL SANT’ANNA: O atual aumento da circulação e da receita publicitária dos jornais é coerente com o crescimento da economia. Isso é normal: quando a economia cresce, aumentam o consumo de informação (como de outros produtos e serviços) e o investimento publicitário. Mostro no meu livro que na primeira metade da década ocorreu um descolamento entre circulação e crescimento econômico no Brasil. Entre 2001 e 2003, a economia brasileira cresceu, embora não muito, e a circulação diminuiu. Em 2004, a economia cresceu mais que nos anos anteriores e a circulação aumentou, porém menos do que a economia. A partir de 2005, a tendência se inverteu: a circulação está crescendo mais que a economia. O que isso mostra é que houve um refluxo depois da bolha de circulação dos anos 90, impulsionada pelos anabolizantes (os brindes que acompanhavam os jornais).

No livro, os entrevistados fazem avaliações negativas do jornalismo na internet. Concorda com elas? As fraquezas da internet são inerentes ao meio, ou podem ser resolvidas?
SANT’ANNA: Parte das deficiências do jornalismo feito na internet está relacionada com o fato de que as empresas ainda estão aprendendo a ganhar dinheiro com esse negócio. Por isso, o investimento nas redações — jornalistas, custos de reportagem, viagens, coberturas de fôlego etc. — é ainda muito baixo. Os meios on-line se valem muito da cobertura feita por meios tradicionais, notadamente os jornais, que são os que têm as maiores redações e estão mais estruturados para a reportagem. Outra parte das deficiências pode ser estrutural, pode estar relacionada ao próprio meio internet. A internet abre novas possibilidades de interação da audiência com o meio de comunicação. Ela tende a eliminar a dicotomia emissor-receptor, tornando seus usuários ao mesmo tempo consumidores e produtores de informação. O usuário deseja intervir na própria hierarquização da informação, e vários sites e portais utilizam ferramentas para permitir que isso ocorra automaticamente: os links mais acessados sobem para o alto da tela. São demandas naturais da audiência da internet. Mas contradizem a própria noção de jornalismo. O que é um repórter? Um profissional treinado que recebe condição de trabalho para apurar a informação utilizando como critérios a isenção e o interesse público, em vez do particular. E o editor? Outro profissional treinado para atribuir forma e importância à informação, usando os mesmos critérios. Há falhas nisso? Lógico que há. Mas o jornalismo consiste na tentativa de se alcançar esse objetivo, e implica até mesmo a consciência das dificuldades que se interpõem no caminho. Quando um meio renuncia aos trabalhos de apuração e hierarquização da informação, ele desistiu, sem tentar, de fazer jornalismo.

Um dos pontos mais delicados apontados por você é a aproximação, nos sites jornalísticos, dos setores editorial e comercial. Quais são as conseqüências dessa proximidade?
SANT’ANNA: Esse é outro aspecto do mesmo problema. O exemplo bilionário do Google indica que a internet dará dinheiro não com anúncios publicitários convencionais, mas com o link patrocinado. Aplicada aos sites jornalísticos, essa técnica implica transformar palavras do texto informativo em links para operações comerciais e de marketing. Tanto que em alguns sites há a figura de um gerente que faz a ponte entre a redação e o comercial. Repare que a internet acrescentou uma palavra ao jargão jornalístico: conteúdo. Creio que essa palavra exprime essa zona cinzenta entre informação e publicidade. Corre-se o risco de se aceitar a interferência do departamento comercial na elaboração das pautas. Quase posso ouvir o gerente de conteúdo anunciando na reunião de pauta: “Precisamos fazer uma matéria que tenha a palavra sabonete porque tenho um cliente para um link patrocinado”. Seria o fim da chamada separação Igreja-Estado, que é a chave da credibilidade do jornalismo.

Os diretores de redação entrevistados por você apontam alguns caminhos para os jornais lidarem com o crescimento da internet, como reportagens especiais e um viés mais “interpretativo” das edições. Você vê isso acontecendo?
SANT’ANNA: Ainda não. Os jornais continuam despendendo a maior parte de sua energia tentando contar para seus leitores o que aconteceu ontem. Os leitores já sabem isso: viram no computador do escritório, receberam pelo celular, ouviram no rádio e ainda tiveram a chance de confirmar tudo à noite, pela TV. Mas as redações estão estruturadas para a notícia no seu estado, digamos, bruto. São muito grandes, com muitos jornalistas, condicionados a apenas noticiar os fatos, reproduzir dados e transcrever declarações. Não é assim que o jornal vai se diferenciar dos outros meios e assegurar o seu espaço no mercado. O jornal tem de investir naquilo que ele faz melhor que outros: contar a história, com começo, meio e fim, com uma narrativa que dê prazer e sentido à notícia; contextualizar e interpretar. Essa é uma transição muito difícil. O jornal não pode, da noite para o dia, renunciar à notícia e abraçar a narrativa, a interpretação e o contexto. Mas precisamos começar já, ou não vamos sobreviver, porque outros meios farão melhor o que fazemos.

Qual é a linha entre jornalismo interpretativo e simplesmente editorializado? Os jornais assumirão postura mais opinativa em seu noticiário?
SANT’ANNA: Acho que a opinião tem o seu espaço nos jornais — por sinal bastante nobre. Não acho que precisamos de mais opinião. Como repórter, exposto cotidianamente à complexidade do mundo, acho que o valor agregado do jornal — e do jornalismo — é a informação, não a impressão pessoal. Por isso, prefiro falar em “interpretação”: uma síntese da informação com a capacidade de compreensão, baseada em referências históricas, culturais, geográficas, econômicas etc. É um grande equívoco pensar que a opinião pode suprir a demanda pela informação. É buscar um atalho que só leva a perder-se nessa floresta de impressões, de dados, de narrativas desconexas em que o ambiente digital pode converter-se, se não houver um trabalho profissional de organização e depuração que resulte em informação.

Os principais jornais brasileiros ainda preparam a fusão de suas equipes de internet e impresso. Você acredita que essas fusões resultarão em enxugamentos das redações e numa piora editorial?
SANT’ANNA: Sempre que houver crises, ou aumento de pressões por lucros, a “convergência” servirá de desculpa para cortes de custos e de investimentos. Mas as empresas que virem isso como estratégia de negócio tenderão a perder os valores intangíveis que explicam a rentabilidade desse setor: influência, prestígio, credibilidade, enfim, as qualidades que cimentam a adesão dos leitores aos jornais. Quem trabalha em grandes jornais, como você e eu, sabe o valor do jornal para muitos leitores. É como se ele fizesse parte de suas vidas, ao longo de décadas. Isso se sente na reação irada quando os decepcionamos. Eles reagem como se tivessem sido traídos na sua confiança e dedicação. E de fato foram. Um dos esforços maiores do meu livro está em mostrar como esses valores se traduzem em rentabilidade.

Um dos dilemas que seu livro aponta é a dificuldade dos jornais em atrair jovens leitores. Existe alguma experiência bem sucedida nesse campo? Por que a dificuldade, em sua opinião?
SANT’ANNA: Com a transição geracional, uma fatia cada vez maior do nosso público-alvo cresceu diante do videogame e do computador. Até por sua conformação neurológica, adaptada ao brilho e aos estímulos da tela, o jornal pode parecer opaco, lento, tedioso. Acho um engano, em resposta a isso, tentar mimetizar os meios eletrônicos, transfigurar o jornal em algo que ele não pode ser. Ele perderia o que tem e não ganharia o que supostamente lhe faz falta. Jornal é para quem quer ler. Isso não quer dizer que ele tenha de ser sisudo, chato. Pelo contrário. A experiência da leitura pode ser extremamente prazerosa. É nisso que o jornal tem de se transformar.

É possível fazer um paralelo entre o momento atual, de crescimento dos blogs, e os primórdios da imprensa, quando os jornais eram muitas vezes empresas individuais de matriz claramente opinativa?
SANT’ANNA: Sem dúvida, há semelhanças. Os jornais também nasceram predominantemente opinativos, ideologizados, engajados. A reportagem que busca a isenção (de novo, consciente das dificuldades de alcançá-la, mas sem desistir dela) é também produto (além de causa) da rentabilidade dos jornais. Custa dinheiro apurar informação de forma profissional. É bem mais cômodo e barato sentar-se numa cadeira e discorrer acerca do mundo. Os blogs têm um papel interessante de expressão de pontos de vista e de experiências. Eles terão o seu espaço. Mas hoje ele está superdimensionado pela falta de recursos dos meios on-line. Quando eles forem mais robustos comercialmente, creio que os blogs cederão parte de seu espaço para outras formas mais sofisticadas de informação.

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