sábado, 23 de junho de 2007

Autoridade tradicional em xeque na China

Modernidade e abertura econômica levam jovens a contestarem princípios milenares e geram choques com geração mais velha

Internacional - Gilberto Scofield Jr.
Jornal O Globo - 17/06/2007

O vídeo começa com uma típica sala de aula onde estudam cerca de 20 jovens chineses de classe média, a Beijing Haidian Art Vocational School. Logo se percebe que o professor Sun Xinmao, de 70 anos, não consegue conter a arruaça. A cena descamba quando um dos alunos, fazendo caras e bocas para a câmera, tira o boné do professor e ameaça bater nele. Todos riem. O professor não fala nada, desconcertado. A arruaça dura uns cinco minutos. Mas o vídeo foi parar na internet e o que era para ser uma brincadeira de jovens chineses inconseqüentes virou um incidente que exigiu a ação da polícia e mobiliza até hoje a China: enfurecidos com as cenas, centenas de moradores de Pequim decidiram cercar o prédio da escola para linchar os estudantes. Telefones que seriam dos alunos foram divulgados na rede, mas não eram os verdadeiros. O que significou o inferno para cerca de 20 pessoas que passaram a receber chamadas e mensagens com ameaças e xingamentos.

O episódio é emblemático de dois fenômenos cada dia mais freqüentes em Pequim. O primeiro, em maior escala, é o dos linchamentos virtuais, que ocorrem quando internautas indignados com situações expostas na internet decidem, eles mesmos, empreender uma caça às pessoas que consideram erradas, seja porque cometeram adultério, se envolveram em situações pornográficas, receberam propina ou subornaram autoridades.

Mudanças são fruto de mais acesso à informação

O segundo fenômeno é um pouco menos gritante, mas desafia um dos maiores princípios da sociedade chinesa, herança de séculos de filosofia confucionista: o respeito a autoridades, pais, mestres ou idosos. São cada vez mais comuns os casos de estudantes que desafiam a autoridade de professores considerados "pouco informados", "fracos", "confusos", ou "pouco globalizados", especialmente a geração chinesa que nasceu no fim da década de 80 e nos anos 90. Estes jovens já têm acesso a muito mais informação - via internet, TV e celular - que seus pais e mestres, geralmente nascidos durante a Revolução Cultural (1966-76). São também mais viajados e muitos falam inglês, um sonho ainda para a maioria dos professores.

No caso dos linchamentos virtuais, a polícia e a Justiça são deixadas de fora e substituídas pela ação anônima em massa. Quem detectou o fenômeno a agência estatal de notícias Xinhua há duas semanas. Uma pesquisa com a palavra-chave "ordem de prisão" no maior site de buscas da China, o Baidu.com, revelou que existem hoje no país 50 mil ordens de prisão virtuais emitidas por pessoas que buscam alguém que pediu dinheiro emprestado e não pagou, filhos que fugiram de casa, maridos traidores, funcionários do governo corruptos, entre outros.

O linchamento virtual - típico de um país onde a maioria dos tribunais ainda julga conforme a vontade do governo e onde faltam leis regulando vários aspectos do convívio em sociedade - divide o país. Uns acham que o fenômeno põe um freio em excessos sociais. Outros acham que é um mero ato de violência: "As ordens de prisão podem ser usadas como uma ferramenta para criticar males sociais e promover a supervisão pública da ordem social, além de contribuir para elevar o nível moral da sociedade", disse Liu Xin, professor de direito administrativo da Universidade de Ciências Políticas e Leis de Pequim.

Nova geração é mais exigente com educação

Xu Xiang, professor de sociologia da Universidade de Nanquim, critica as ordens de prisão, alertando para sua falta de base legal: "Na maioria dos casos, são um tipo de violência gerada pela internet ou uma espécie de tortura alimentada por grupos privados, nada relacionado com a melhora da moral na sociedade", diz ele.

No caso dos estudantes que desafiam os professores, o espanto não é menor. Yiang Yifei, estudante do terceiro ano do Ensino Médio em Pequim e considerada a melhor do colégio, foi parar na imprensa local quando decidiu desafiar seu professor de história, que acabou demitido:

- Ele ensinava o que está nos livros palavra por palavra - reclama. - Então decidimos reclamar porque o professor se recusava a responder perguntas históricas que não estavam nos livros ou que se relacionavam a um filme ou uma novela histórica vistos na TV. Talvez o professor achasse que as perguntas iam além dos textos, mas acho que, se um aluno tem uma pergunta para o professor, ele tem que respondê-la.

A história se repete em maior ou menor grau em várias escolas do país e incomoda pela própria natureza da educação chinesa, calcada no método do ouve-decora-escreve-na-prova-passa e na qual a maioria dos professores, pela própria tradição confucionista, não chega a ser questionada. Um editorial do jornal "China Daily" afirma que "a diferença de gerações entre professores e alunos vai da linguagem às atitudes. Por causa da economia de mercado, crianças que cresceram nos anos 90 acreditam que educação é algo que eles consomem e, portanto, têm o direito a ter outra se a que têm não é considerada boa".

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