sábado, 23 de junho de 2007

TVs se autocensuram para ter classificação livre

Filmes, novelas e seriados têm cortes de cenas de nudez e violência; medida visa adequação às exigências do governo

País - Demétrio Weber
Jornal O Globo – 17/06/2007

Para se adequar às exigências da classificação indicativa do Ministério da Justiça, as emissoras de TV aberta têm que praticar autocensura e cortar cenas de violência e nudez. As alterações têm um objetivo: tentar enquadrar filmes, seriados e novelas nas categorias de classificação definidas pelo Ministério da Justiça. A prática começou a ser adotada antes mesmo da edição pelo ministério da portaria 264, que provocou polêmica e reações em fevereiro deste ano. No centro da discussão está a vinculação entre a faixa etária recomendada para os programas e seu horário de veiculação.

Uma liminar do Superior Tribunal de Justiça (STJ), concedida inicialmente em 2000 a pedido da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), impediu que haja vinculação entre a faixa etária atribuída pelo governo e o horário de exibição. A decisão anulou os efeitos de portaria editada no governo Fernando Henrique. No governo Lula, a portaria 264 reeditou a vinculação, mas a entrada em vigor dessa medida foi adiada diante das críticas.

Seriados como "O Vidente" e "Smallville", exibidos pelo SBT, já tiveram trechos cortados para garantir a sua reclassificação para a categoria livre. O mesmo ocorreu com os filmes "Pocahontas - o Encontro de Dois Mundos" e "A Onda dos Sonhos", da TV Globo; a novela "Paixões Proibidas", da Band; e a série "Zorro - La Espada y la Rosa", da rede Record.

Os cortes dos programas estão detalhados nos pareceres em que o Ministério da Justiça define a classificação por faixa etária. O GLOBO teve acesso a alguns deles, depois de uma semana de negociação com o Dejus. Primeiro, o departamento alegou que os pareceres não eram públicos. Mais tarde, liberou a consulta e informou que, a partir de agora, o entendimento do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação (Dejus) é de que qualquer cidadão poderá fazer o mesmo.

SBT reeditou seriado para ter classificação livre

O seriado "O Vidente", que é exibido nas manhãs de domingo, teve episódios classificados, no ano passado, como impróprios para menores de 12 e 14 anos. Os analistas do Dejus consideraram que havia inadequações como agressão física, assassinato e imagens de um procedimento cirúrgico que impossibilitavam atender ao pedido de classificação livre.

O SBT reeditou os episódios, cortando as cenas que haviam motivado a classificação indesejada. "Tomamos a liberdade de proceder a alguns ajustes que em nada prejudicam o fiel entendimento do produto final", diz carta enviada ao Dejus. O texto lista as "cenas cortadas" em cada episódio, indicando o tipo de conteúdo excluído e o tamanho do corte, que pode durar apenas dois segundos ou chegar perto de meio minuto. Num dos episódios, foram feitos 27 cortes, excluindo cenas de erotismo, nudez, agressão física, assassinato e exposição de cadáver.

Com as alterações, o ministério mudou seu entendimento e acabou reclassificando os episódios como livres. Num dos relatórios, os analistas escreveram: "tal cena é amenizada em função de cortes realizados... não sendo mostrado o homem atingido, tampouco seu ferimento".

O advogado e consultor da Abert Antônio Claudio Ferreira Netto afirma que esse procedimento indica o tamanho da pressão a que as empresas estão submetidas: - Embora as emissoras não admitam que o ministério tenha poder para impor horários, o que é inconstitucional, elas têm seu público-alvo, entendem que a classificação é um instrumento para os pais e não querem que a obra seja privada desse público. As emissoras vivem submetidas a uma pressão grande do órgão classificador.

"Os cortes são feitos espontaneamente"

O diretor do Dejus, José Eduardo Elias Romão, rechaça a acusação de censura e diz que os cortes são realizados voluntariamente pelas emissoras, que são obrigadas a informar a idade mínima a que se recomenda cada programa. - Os cortes são feitos espontaneamente. Respondem a interesses comerciais. A autocensura não é para proteger crianças e adolescentes - diz Romão.

O filme "A Onda dos Sonhos", adquirido pela TV Globo, foi classificado originalmente, em 2005, como impróprio para 12 anos. Duas cenas foram cortadas, excluindo um "gesto obsceno" e "linguagem inadequada". A obra foi reclassificada como livre em maio de 2007. A TV Bandeirantes também solicitou nova análise da novela "Paixões Proibidas". "Existe uma grande expectativa do público em poder rever a trama em horário menos tardio. Essa razão nos leva a solicitar a V.S.ª uma reanálise de uma versão editada", diz carta enviada ao Dejus.

A classificação indicativa está no centro de uma polêmica entre emissoras de TV, classe artística, Ministério da Justiça, movimentos sociais, pais e telespectadores. De um lado, há acusações de que a classificação, na verdade, não passa de censura, ao vincular os horários de exibição à classificação por faixa etária. Ou seja, que uma novela considerada imprópria para menores de 12 anos, por exemplo, só possa ser exibida após as 20 horas. De outro, há o argumento de que é preciso proteger a infância e a juventude da exposição a conteúdos inadequados e dos exageros da guerra pela audiência.

- A censura nunca vem se apresentando como instrumento de opressão. Ela se apresenta como defensora da família, do cidadão. Depois que instala, vira instrumento de arbítrio e imposição de interesses estatais sobre o cidadão - diz Ferreira Netto.



Dos 26 classificadores, dez são estagiários

Analistas do Ministério da Justiça ganham de R$390 a R$1.100 mensais

País - Demétrio Weber
Jornal O Globo – 17/06/2007

Antes ou depois de ir ao ar, a programação de TV passa pelo crivo de uma equipe de 26 analistas do Ministério da Justiça, incluindo dez estagiários. Eles respondem pela classificação indicativa, ou seja, têm a tarefa de definir a idade mínima recomendada ao público de cada programa. Sua palavra orienta não só as famílias, mas anunciantes e emissoras. Se a Justiça der ganho de causa ao governo em julgamentos que estão prestes a ocorrer no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, a classificação passará a determinar também o horário de exibição. Nesse caso, uma novela imprópria para menores de 14 anos, por exemplo, só poderia ir ao ar após as 21h.

A maioria dos analistas tem menos de 30 anos. O mais jovem, Lucas Brasil, de 19, é estudante do 3º semestre de ciências sociais na Universidade de Brasília (UnB). - É uma responsabilidade muito grande. Não queremos transformar a sociedade numa utopia ética ou moral, até porque ética e moral são conceitos relativos. Tentamos ajudar na busca de um mínimo de bom senso, pensando nas crianças.

Os analistas atuam em duplas, confinados em salas de menos de nove metros quadrados, no 3º andar do prédio anexo ao ministério. Sentados em cadeiras de escritório, ficam a menos de dois metros de aparelhos de TV de 14 a 29 polegadas. Eles assistem a filmes, seriados, desenhos, novelas, programas de auditório, a quase tudo que vai ao ar. O expediente é de seis a oito horas por dia. O salário vai de R$390, para estagiários, a cerca de R$1.100 para os funcionários, que são terceirizados.

O analista Edson de Oliveira Júnior, de 42 anos, não acha que faz censura: - A gente não corta nada nem pede para cortar. Apenas indicamos a faixa etária recomendada - diz Edson, que é formado em administração de empresas.

O Manual da Nova Classificação Indicativa orienta os relatórios de análise. O texto, elaborado com a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), busca definir critérios objetivos para a classificação, como o percentual de cenas violentas ou de nudez tolerável para cada categoria: especialmente recomendado, livre, menores de 10, 12, 14, 16 e 18 anos. - Não tem achismo - diz a coordenadora de Classificação Indicativa, Maria Celva Reis, convencida de que há desinformação sobre a classificação.

- O manual é confuso, subjetivo e de um dirigismo estatal que é totalmente incompatível com a liberdade de expressão prevista na Constituição - diz o consultor da Abert, Antônio Claudio Ferreira Netto. O manual contém regras curiosas. A punição de criminosos ou a discussão sobre a prevenção da Aids são atenuantes, isto é, podem reduzir a classificação etária. E cenas de nudez e violência podem ser atenuadas ou agravadas de acordo com a trilha musical ou a sonoplastia.

- Claro que há conceitos indeterminados e subjetividade. O problema é quando o Estado decide exclusivamente com base nos sujeitos que trabalham para o Estado. Tentamos evitar isso, objetivando o processo de análise e garantindo o contraditório - diz o diretor do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação do ministério, José Eduardo Romão.

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