sábado, 23 de junho de 2007

Em discussão: Judiário & Mídia

Judiciário e mídia, o 'casal infernal'

Artigo - Luís Felipe Salomão
Jornal O Globo - 07/06/2007

A relação entre Judiciário e imprensa é dialética, quase contraditória. Nesses tempos de integração total de fala, texto, vídeo, áudio e telecomunicações eletrônicas, confirma-se o advento da "era da comunicação", acelerando-se as relações sociais e jurídicas.

Como pano de fundo, a reengenharia das instituições e poderes republicanos no ambiente democrático, pós-ditadura, em meio à "sociedade espetáculo".

No debate em torno do assunto fala-se do tempo urgente, urgentíssimo, do jornalista para apurar a notícia e disparar a informação; e também da necessária maturação que o juiz deve ter para o julgamento de qualquer causa. O "tempo" de um é diferente em relação ao do outro, surgindo daí muita desinformação a respeito, gerando enorme área de atrito.

Também convém mencionar a linguagem empolada, quase atávica, de alguns operadores do direito, criando barreira que dificulta adequado conhecimento sobre os conteúdos das decisões e manifestações processuais em geral.

Fica também patente uma má-formação e qualificação, em regra, do profissional do jornalismo, um certo despreparo em relação às questões que envolvem a Justiça. Não há, nos cursos de graduação, obrigatoriedade quanto a noções gerais de direito. Constata-se ainda certa inaptidão de alguns magistrados para o relacionamento com a imprensa, porquanto não recebem treinamento adequado para tão relevante tarefa.

Debate-se o problema da alegada "censura prévia" e da reclamação freqüente de parte dos jornalistas, no sentido de que há intervenção do Judiciário na produção jornalística.

Alguns magistrados entendem que decisões judiciais proibindo divulgação ou circulação de informações se baseiam na Constituição, que prestigia os direitos à privacidade e de imagem em detrimento da notícia ou informação. Para muitos juízes, não há censura quando se preservam princípios assegurados no texto constitucional e ainda mais quando a decisão pode ser impugnada com recursos típicos do processo, situação muito diferente do censor do tempo da ditadura, que percorria as redações e, ao seu sabor e conveniência, ditava o que podia ou não ser publicado.

Os jornalistas, ao contrário, defendem que sempre prevalece o direito de informar, vale dizer, "dever de prestar informação", mesmo quando contraposto a outros direitos fundamentais.

Outra questão controvertida decorrente da liberdade de informar é a possibilidade de indenização por danos morais, em caso de abuso pelos meios de imprensa. Os jornalistas e as empresas sustentam que há uma "indústria da indenização". Os juízes afirmam que, sem matéria-prima, não se pode falar em "indústria". Melhor explicando, se há abuso ou ofensa à honra individual com a divulgação da notícia, nasce o dever de ressarcimento em razão da violação a um dos direitos da personalidade. O Judiciário, como é certo, só atua quando acionado.

Há reclamação quanto ao corporativismo dos magistrados no julgamento das demandas indenizatórias e, reciprocamente, lamentos em torno de matérias tendenciosas contra o Judiciário na imprensa.

Jornalistas e juízes examinam, atualmente, temas como a ética jornalística e judiciária e o funcionamento dos mecanismos internos de controle das atividades, assim também o aprimoramento das ações dos segmentos (sindicatos e associações) para orientação dos profissionais.

Essa relação de amor e ódio, que Robert Batinder denominou de "casal infernal", traz à tona nitidamente três papéis destinados aos mesmos personagens: a) juiz como garantidor do preceito constitucional da liberdade de expressão; b) magistrado como aquele que resguarda outro princípio constitucional, o da privacidade e os direitos da personalidade; c) união entre Justiça e mídia, em prol da cidadania e contra a impunidade.

Por isso, aparentemente contraditórias, as ações podem ser convergentes. O perigo é quando a mídia resolve ocupar o lugar de um tribunal social. O comportamento de uma pessoa, em público, é o mesmo da vida privada?

As imagens instantâneas e espetaculares de agentes públicos ou particulares presos, antes mesmo de qualquer culpa formada em juízo, podem se transformar em enredo de novela, com bandido e herói?

Existe, na mídia, o princípio do "devido processo legal" (due processo of law), garantindo o direito de defesa e o princípio da inocência até prova da culpa?

Creio que o momento é de reflexão quanto ao papel de cada profissional no contexto da realidade brasileira atual. Priorizar os julgamentos dos casos de corrupção é uma boa resposta, investir na formação adequada de juízes e jornalistas também. Mas é preciso ter cuidado com a preservação das instituições, evitando-se generalizações e, sobretudo, com o estado de direito.

O debate que se trava hoje só é possível em razão da democracia que vivemos. E o Judiciário tem a missão constitucional de preservá-la.



Outra vertente

O Grande Perigo

Artigo - Dimmi Amora
Jornal O Globo - 12/06/2007

É cada dia mais comum encontrar entre integrantes do mundo jurídico pessoas que não toleram o trabalho da imprensa. Lendo o artigo do desembargador Luiz Felipe Salomão, no GLOBO de 7 de junho, fica mais claro entender o motivo, devido à excelente exposição de contrastes entre o ofício dos membros do Judiciário e o dos jornalistas realizada no texto. Aos que colocam os antolhos do seu próprio universo, será obvio não entender e não aceitar as peculiaridades da outra profissão e, assim, criticar o trabalho alheio sempre que este não lhe for favorável.

Demonizar o trabalho do Judiciário e da imprensa serve a diversos interesses dentro de uma sociedade. Fiquemos na imprensa. A repetição dos pregadores sobre o demônio do exagero da mídia ajuda a consolidar dentro do sistema judicial um pré-conceito sobre este fato e, assim, facilitar a vida de quem defende as supostas vítimas da mídia. Mas isto não é o que preocupa de fato. O que realmente começa a se consolidar de forma trágica dentro da Justiça é a idéia de que esta se tornou o único regulador da sociedade e tem, não a palavra final em caso de disputa, mas toda a palavra sobre todos os fatos. Sendo a imprensa detentora de um dos discursos da sociedade seria ela, para estes pregadores, o grande perigo. O texto do desembargador Salomão, infelizmente, dá alimento a essa canhestra idéia.

É até difícil contestar um magistrado diletante que em sua carreira vem pautando pela ética, pela celeridade e pela sobriedade em suas decisões. Mas não é possível ficarem sem resposta frases como "O perigo é quando a mídia resolve ocupar o lugar de tribunal social", ou "Existe, na mídia, o princípio do 'devido processo legal' garantindo o direito de defesa e o princípio da inocência até prova de culpa?", ou "E o Judiciário tem a missão constitucional de preservá-la (a democracia)".

Apesar de não dito no texto, o contexto destas críticas à mídia no artigo é o tratamento dado às operações da Polícia Federal desencadeadas a partir de 2003. Veladamente, ele é criticado pelo magistrado por ser espetacularizado. O fato é que as operações são feitas para serem espetáculos. E um dos responsáveis por isso é o Poder Judiciário. Em primeiro lugar, porque ainda não aconteceu, oxalá não acontecerá, de policial federal levar alguém para o xilindró sem a autorização de um juiz, desembargador ou ministro de Suprema Corte. Portanto, o espetáculo das prisões temporárias – algumas desnecessárias, algumas injustas – tem sempre a chancela da Justiça. E, em segundo lugar, os policiais se cansaram de ver seus trabalhos sendo jogados para obscuros escaninhos das varas criminais sem apresentarem resultados, ou seja, a punição dos culpados. Agora, o resultado pode até ser o mesmo: ninguém punido. Mas a imagem pública dos policiais é a de que eles cumpriram seu dever. Quem fica com a batata quente da impunidade na mão é o Judiciário.

A decisão de cometer atos simbolicamente fortes como grampear ou prender pessoas antes do fim do processo não é da mídia. E tentar fazer com que a mídia convença um sujeito comum — leitor, ouvinte ou telespectador — de que policiais, promotores e juízes acharam que um sujeito merece ser preso por alguns dias, mas que, depois, ele pode não ser um criminoso é acreditar que jornalistas podem operar milagres. O máximo que podemos é usar a linguagem técnica (aceita pelo Judiciário, por prévio acordo) para evitar que a condenação social — já imposta pelos atos jurídicos de levá-lo preso, revistar a casa, apreender bens, vasculhar sigilos — seja ainda mais agravada por palavras e imagens. Falar, portanto, em mídia como "tribunal social" constitui um exagero, visto que os possíveis "julgamentos" dela nesses casos não acontecem sem informações da própria Justiça. Querer controlar os atos de resignificação dessas informações é dar açúcar ao demônio do autoritarismo.

Além disso, usar "tribunal social" com conotação claramente negativa não parece apropriado. O funcionamento da sociedade se dá, sim, em outros "tribunais". São famílias, vizinhos, empresas, escolas, grupos de amigos que criam suas regras, aceitas por todos, e fazem julgamentos quando alguém não cumpre esses preceitos e aplicam punições. E os grupos erram nessas punições? Muitas vezes. Mas se corrigem também, além de sempre haver a possibilidade de a Justiça reparar os erros nos casos em que a lei permite. E a Justiça, repara os erros que ela comete? É jargão jurídico dizer que alguém tem que ter o direito de errar por último...

A idéia de que veículos de comunicação terão um "devido processo legal" antes de publicar chega a ser primária. A mídia tem seu processo próprio, assim como uma padaria, um colégio, uma família têm os delas — todos submetidos às leis do país. Se o padeiro for usar o "devido processo..." para fazer pão, só vamos comer torrada, visto que ele é — por natureza própria — lento. O "devido..." será realizado onde a sociedade definiu que ele deve acontecer: na Justiça. E a mídia será tribuna para que todos saibam o andamento dele. E a grande mídia será apenas uma das tribunas, não a única, já que é cada vez mais comum que a divulgação se dê por comunicação pessoal.

O que está escrito acima é uma parte da democracia. Há outras como o bom funcionamento das instituições, a harmonia entre os poderes, a liberdade para que as pessoas possam tomar suas decisões sem o risco de serem perseguidas, a melhoria na qualidade de vida da população, entre outras. Preservar a democracia, portanto, não é tarefa apenas do Judiciário. É de todos. Ao Judiciário a democracia que está em construção no Brasil reservou importantíssimo papel (não o único): o de ter a palavra final para dirimir conflitos. As palavras anteriores devem ficar a cargo da sociedade.

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